agosto 13, 2013

Um Olhar estrangeiro sobre o Brasil,
por Arnaldo Jabor

Um Olhar estrangeiro sobre o Brasil

O cronista Arnaldo Jabor, também um dos melhores e mais criativos cineastas brasileiros, nos traz um retrato fiel do novo filme estrelado por Glória Pires que vive um caso amoroso com uma americana: é a história da empreendedora Lota Macedo Soares e da poetisa Elizabeth Bishop. No texto, Jabor relata a visão da intelectual norte-americana sobre o Brasil, país que amou e onde viveu seu grande amor por quase 20 anos:

A rara flor da poesia

ARNALDO JABOR

Vi o filme novo de Bruno Barreto, Flores Raras, previsto para entrar em cartaz esta semana. Uma história de amor entre duas mulheres nos anos 50/60 no Rio. O filme tem uma delicadeza rara hoje em nosso cinema, cheio de neochanchadas para arrasar quarteirões e embrutecer mais ainda o imaginário das plateias. Flores Raras não; tem um clima quase "de época" na mise-en-scène, pois retrata ainda o tempo da delicadeza e da ilusão - praias, montanhas e sol cegando a cidade para seus problemas. É um dos belos filmes de Bruno, como Dona Flor ou o Romance da Empregada. Duas mulheres se amam: Lota e Elizabeth Bishop.
Muita gente não sabe quem foi Elizabeth Bishop, nem é obrigada a saber. Trata-se de uma grande poeta americana que, em 1951, passou pelo Brasil, apaixonou-se pela brasileira Lota de Macedo Soares, intelectual da elite carioca, e aqui ficou por 16 anos, entre grandes alegrias, sofrimentos, crises de alcoolismo e extraordinários poemas. Lota era assessora de Carlos Lacerda e comandou a construção do nosso "Central Park" - no Aterro do Flamengo, contra os vorazes políticos picaretas que queriam tomar conta da área. Ali, consumiu sua saúde e seu amor por Bishop. Sempre ouvi falar de Elizabeth Bishop, mas só fui ler seus poemas há poucos anos, quando saiu a excelente tradução de Paulo Henriques Britto. Por que não li na época, eu que gostava tanto de poesia? Porque (deliciem-se, patrulheiros...) como ela era "caso" de Lota, assessora de Carlos Lacerda, o inimigo máximo da esquerda janguista, ficava feio ler seus trabalhos. Ela era uma "americana lésbica" e, certamente, "reacionária" - palavras devastadoras para nós. Éramos assim em1967.

No entanto, Bishop não era apenas uma "boa poetisa". Ela está no nível de Marianne Moore, Roberto Lowell e outros; tem uma poesia seca e dolorida, um amor transbordante e contido, uma poesia afetiva das "coisas", como fez Francis Ponge, João Cabral, Moore e, lá longe, John Donne. Elizabeth Bishop fez uma poesia não lamentosa, uma poesia crítica e seca, com forte nostalgia romântica, sem a melancolia paralisada de outro gênio como Emily Dickinson.
Bishop escreveu muitos poemas sobre o Brasil dos anos 50 e 60, nos quais se vê, mesclada a uma irritação "calvinista" com nossas mazelas, uma profunda compaixão pelo desamparo social, um amor raríssimo pela fragilidade do povo, poucas vezes encontrado em poetas brasileiros.
Elizabeth Bishop não era de "esquerda nem de direita", como se dividiam todos naquela época (e ainda hoje).
Era uma liberal americana, com olhos anglo-saxões, que assistiu como uma "brasilianista artística", a anos cruciais de nossa história: a morte de Getúlio, JK, Jânio, e até o golpe militar de 1964. É curioso ver que sua vida piora enquanto o Brasil piora. E Elizabeth tem nesse tempo a antevisão dolorosa do futuro difícil que esperava nosso País. Ela vê uma infraestrutura secular de equívocos que estão nas instituições como um veneno que tudo contamina. Elizabeth viu além das ideologias, além dos dogmas.
Ela escreve: "Como país, acho que o Brasil não tem saída - não é trágico como o México não; é apenas letárgico, egoísta, autocomplacente, meio maluco". Mas, mesmo assim, tem amor por ele: "Um País onde a gente se sente de algum modo mais perto da verdadeira vida, a de antigamente. (...) Com todos os seus horrores e estupidez, uma parte do mundo perdido ainda não se perdeu aqui".
Seu olhar profundo se detinha sobre os sintomas do que nos acontecia e poderia continuar acontecendo. Ela viu os indícios de tragédia e paralisia que se ocultavam por trás do egoísmo da direita udenista e também da iludida generosidade "de esquerda", ela viu que uma maldade profunda nos regia, que uma impiedade secular comandava nosso atraso. Ela poderia ter escrito, no mesmo tom de Eça de Queiroz, cem anos antes, sobre o Brasil:
"O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas idéias aumenta a cada dia. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Não é uma existência; é uma expiação".

Seus poemas sofisticadíssimos desciam ao nosso chão:
"Sob a falsa amendoeira/ uma puta ainda menina/dança um chá-chá-chá, girando/como um átomo na esquina (...) na sombra negra de meu prédio/ um negro levanta a camisa/ pra mostrar um curativo/ cobrindo negra ferida/ com um bafo de cachaça/ potente feito bazuca/ aponta a bandagem branca/ e me diz coisas malucas/ dou-lhe dinheiro e boa-noite/ por força do hábito. Ah!/ não haveria uma palavra/ mais relevante pra lhe dar?"
Perguntem a qualquer ladrão de gravata de Brasília e todos dirão de mãos postas e olhos em alvo que "o povo é sagrado". Nós costumamos idealizar epicamente o povo ou o ignoramos com empáfia; nós costumamos rir de sua ignorância ou transformamos a zona geral, a bagunça, em uma espécie de orgulho cultural, como se o fracasso permanente e outras bossas fossem uma "riqueza macunaímica" - o tesouro de nosso destino de "malandros inzoneiros".
Elizabeth Bishop não. Ela olha cada ferida aberta, olha o negro bêbado, a cadela leprosa na rua, a solidão do bandido Micuçu no morro da Babilônia, o doente morrendo na maca no rio Amazonas, os bolos coloridos de mau gosto na padaria, as sandálias de plástico das pobres mães com bebês em Ouro Preto, provérbios em para-choques de caminhões, os pobres diabos jogando absurdas peladas no capim por toda a parte, os tatus e corujas fugindo da queimada, crianças doentes brincando na lama, toda essa desgraça vegetando no meio de majestosas paisagens cortadas por cachoeiras e florestas. E chora, tomando porres homéricos nos botequins mais sujos.
Bishop amava o Brasil com olhos mais fundos do que nós.
(O Estado de S. Paulo, 13/08/2013)

5 comentários:

Delmanto disse...

Lota Macedo Soares foi uma carioca muito famosa. Da Família Macedo Soares, era avançada para a época. Quando nem se falava em ecologia e preservação do verde, Lota atuou na assessoria do governador Carlos Lacerda, ficando encarregada de criar uma área verde espetacular no Aterro do Flamengo: porção considerável de terra sob o entorno da praia do Flamengo. Lota contratou o paisagista Roberto Burle Marx, já famoso por suas parcerias com Oscar Niemeyer, para atuar com “carta-branca” em sua criatividade e fazer do Aterro do Flamengo uma homenagem à Vida e à Natureza.
Hoje, está lá! Magnífico!
O governador que sabia escolher seus auxiliares, a intelectual antenada e o paisagista mais famoso e criativo do Brasil. Deu no que deu.
E o filme mostra o romance de Lota Macedo Soares com a poetisa norte-americana. Avançadas para a época, hoje seriam apenas mais um casal. Ou como diz humoristicamente Moacir Franco: hoje temos casal de mulheres, casal de homens e casal antigo...rsrsrs
Mas Jabor retrata tudo com muita sinceridade, inclusive quando mostra o patrulhamento” da esquerda que não admitia elogios às obras de administradores considerados da direita. Assim era o Brasil na década de 60. Vale a pena ler o livro e assistir ao filme de bruno Barreto.

Anônimo disse...

Eliane Lobato (Facebook):
Claro que o tema inspira mas o autor do Blog foi poético ao comentar a história de Elizabeth Bishop & Lota de Macedo Soares e, seu amor pelo Brasil. Vale à pena Ler e claro, assistir ao filme Flores Raras. Lindo texto Armando Moraes Delmanto

Anônimo disse...

Inês Vieira (Facebook): Eliane Lobato, você sempre descobrindo, os ugares bons, as pessoas boas, os textos oportunos e filmes maravilhosos...além de grande amiga, excelente astróloga você é uma facilitadora do bem viver!

Anônimo disse...

Jo Sant'Iago (Facebook): vale muito a pena ler o livro

Anônimo disse...

Wlademir Vicente Salles (Facebook): Belo filme. Me lembro das obras do aterro do Flamengo. Benat

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