(ilustração de Marco Antonio Spernega)
Botucatu tem gravado esse nome: Quim Marques!
Foi Professor, Artista Plástico, Diretor da “Cia de Teatro
Chafariz” e do Grupo de Teatro Municipal, colaborou com jornais e revistas da
cidade. A crônica abaixo foi publicada na PEABIRU, revista botucatuense de
cultura, nº 15, de maio/junho de 1999. É uma preciosidade. Vale a leitura!
Lavapés - Meu Rio Primeiro
Quim Marques
A chuva cai forte, pesada, densificando o ar com um
som aconchegante, desses que nos fazem enrodilhar-nos no sofá, dentro de casa,
bebendo chá ou outra bebida quente, acarinhando a alma.
Lá fora, no fundo do quintal, além da
cerca, um barulho-turbilhão. O rio Lavapés passa, cheio e rápido,
lavando seu leito, fuçando suas margens, suas mágoas, e carregando todo o lixo
que lhe foi jogado na estação das secas.
Do lado de cá, através da janela,
contemplo-o, e sua sarabanda vai revolvendo também o meu rio de memórias. E rápido, em movimento contrário, meus
pensamentos-peixes, feito piracema, fuçam meu passado, para a desova de meus
sentimentos. Lá, onde as manhãs eram
sempre luminosas e o lixo não corria ainda nas veias do homem.
Então, me vejo outra vez menino,
brincando em suas águas com outros meninos, quando ainda éramos nus e sabíamos
andar pelo rio descalços e sem medo, empenhando-nos em descobrir os segredos do
seu leito.
Nós, crianças, o amávamos e o
entendíamos, sempre atentos ao seu sonho de lonjuras e amplidões.
Foi quando ganhei essa alma viajante,
que busca sempre alcançar, num corredor contínuo e intenso, os mistérios e
segredos do mar onde desemboca esse rio primeiro.
Ah, meu rio de infância Lavapés! Disseram-me que lhe deram esse nome pela
mania que tinha de acolher os peregrinos das estradas, lavando-lhes os pés da
poeira e do cansaço, num arremate de conforto para esses viajantes.
Hoje, você está doente, cansado, sujo,
enfurecido, e ruge, nas cheias, buscando arrancar de seu caminho a ingratidão
que lhe jogam pelas margens!
A vida é outra. São outros os peregrinos que agora atravessam
suas pontes, sentados em seus veículos, vaidosos de suas máquinas e surdos para
a música-marulho de sua voz.
Naqueles tempos, suas águas eram claras
e límpidas. Em seu curso viam-se animais
e pássaros saciando a sede.
Pelas manhãs, as lavadeiras, descendo
tagarelas pelas ruas da cidade, vinham alvejar o tempo. O rio, escutando o rumorejar das conversas,
ficava sabendo da vida entretecida em nossa cidade.
Às tardes, vinham os tropeiros encher
os corotes de água, para seguir com seus animais o transporte de todos os
rebanhos.
E você cantava, alegremente, junto com os bem-te-vis, os fogo apagou, as saracuras
e os quero-queros. Pelas suas
margens nasciam as glórias-da-manhã e
os lírios-do-brejo, os hamerocális. Os lambaris e os cascudos dançavam, nos recantos ribeirinhos entre os
juncos e as taboas.
Época de muito respeito e
gratidão. O rio emprestava a todos da
cidade a sua força, para mover os moinhos na feitura da farinha para o sagrado
pão. Lembro-me do moinho do salgueiro, o do
Chicuta, e do som ritmado das correias da roda cantante movida pelas suas
águas. Da fumaça da farinha enevoando o
moleiro, deixando-o empoado como um ator de comédia popular...
Às suas margens aprendi não só a lição
de sua generosidade, mas também a de liberdade e determinação.
Em seu leito, exercitei-me para a arte,
e construi asas para todas as naturezas de vôo.
Uma pedra grande, como uma ilha
plantada em suas águas, era minha casa, meu castelo, minha fortaleza, meu porto
e meu barco, de onde me aventurava por rotas e continentes, particulares à
minha mágica geografia, transcendendo-me além de todas as fronteiras.
E o rio corria...
Todos os quintais o visitavam em seu
caminho. E caminhando em seu leito, eu
visitava todos os quintais, no delicioso risco de apanhar frutos proibidos,
coniventes e dadivosos, que se deixavam apanhar pela infância irreverente.
O rio era a própria vida cantante,
embalando a vida de nossa cidade.
Quando os dias estavam quentes, minha
família e outras tantas da vizinhança aproveitávamos o frescor das tardes e
sentávamos nos bancos sob as paineiras do antigo Chafariz da Boa Vista. O
perfume das flores, misturados aos lilases, rosas e azuis derramados do céu,
naquele momento tão solene, de crepúsculo, nos faziam sentir plenos e em paz
com o mundo.
O rio fazia sonoplastia perfeita para
esta cena.
Nós, crianças, corríamos pelo gramado
brincando de pega-pega.
Os adultos faziam a prosa do cotidiano.
Depois, cansados de tanto brincar,
sentávamos nós, também, e fazíamos colares de flor-de-maravilha para
presentear nossas mães.
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O rio nos permitia um jogo eterno de
brincadeiras e atiçava nossa imaginação, permitindo o realizar todos os nossos
sonhos.
Através dele nos tornávamos
aventureiros, piratas, bandeirantes, bandidos e mocinhos de cinema,
engenheiros, peixes e animais, reis e povos de países imaginários.
Às vezes o percorríamos todo, desde a
sua nascente até as proximidades do Lageado. Íamos demarcando pontos geográficos, com a
terminologia própria de nossas observações: A
Curva do Alemão, o Barranco da Figueira Grande, a Cachoeira da Chácara, A
Represa do Moinho, o Barranco do Deslize, o Tanque do Salgueiro. Lugares únicos e mágicos que ficaram para
sempre nos caminhos da alma. Com esses
pontos inventávamos mapas e tesouros; simulando lutas e guerras para
encontrá-los. Forjávamos aventuras e nos
sentíamos heróis.
Os tesouros eram latas vazias de
bolacha, repletas das sobras de colares e brincos de nossas tias; restos de
vidros coloridos quebrados e cristais encontrados no fundo das águas do rio.
O tempo passou... A cidade foi
crescendo. E o rio Lavapés foi ficando cada vez mais distante da infância.
Poucas crianças chegavam às suas
margens, proibidas pelos pais, que temiam a contaminação de seus filhos. Ele se tornara depositário de todos os
esgotos, de todos as sobras, lixo e entulho...
Está doente e pobre. Mal cheiroso.
Ameaçado.
Falam em enterrá-lo. Querem colocá-lo numa caixa, espremido entre
duas vias marginais.
É a vontade do progresso, de um
progresso distanciado de valores humanos.
Por que não construir novos
logradouros, construindo a memória, onde as pessoas possam se encontrar nos
fins de tarde, deixando um pouco o isolamento em que a televisão as coloca?
Então, sentar novamente sob as árvores
e ouvir o correr de suas águas despoluídas, a sua música quando passa.
Ah, meu rio Lavapés! Meu
rio primeiro, meu rio de infância! Quisera tanto vê-lo novamente alegre,
forte e saudável!
Não morra, rio! Saiba que o amamos.
Possa você, Lavapés, lavar ainda os pés, a alma e a memória de todos os que
compartilham seu canto, seu rumo, sua beleza.
Dá-nos olhos lavados de ver, de novo,
sua vida resguardada e plena, a correr livre, agora, pelos caminhos do futuro.
17 comentários:
É um privilégio Botucatu possuir um trabalho tão qualificado quanto lindo, como esta crônica deQuim Marques. Ele era um artista, na acepção da palavra. Do ensino, para escrita, para a arte de representar, para a arte de ensinar a representar, para a arte de pintar com perfeição quadros à óleo... Marcou a sua época. Com muito orgulho, Professor formado pela nossa ESCOLA NORMAL “DE. CARDOSO DE ALMEIDA”.
A Revista PEABIRU o tinha como seu colaborador. E é com orgulho que apresentamos o seu trabalho atemporal, histórico, definitivo....
No “Dicionário dos Escritores Botucatuenses”, de Olavo Pinheiro Godoy, está tudo sobre Quim Marques: José Joaquim Marques, nasceu em Botucatu, aos 03 de outubro de 1943. Filho de Antonio Joaquim Marques e Ignara Mercedes Amorim Rodrigues. Formou-se professor pelo Instituto de Educação “Dr. Cardo de Almeida” (Escola Normal). Em 1964 realizou o Curso de Cenografia pela Escola de Arte Deamática “Prof. Flávio Império SP; Curso de Formação de Atores pela Escola de Arte Dramática da USP/SP (1969), Curso de Formação de Professores de Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado/SP (1975); Curso de Complementação em Música e Teatro para a Formação de Professores de Educação Artistica pela Faculdade de Belas Artes/SP (1978); Escultura em Argila pelo Atelier Sakai de Embú/SP (1965/1981).
Bibliografia: “O Recreio dos Pássaros” (1988); “Lavapés, Meu Rio Primeiro” (1999); Artigospublicados na Revista Botucatuense de Cultura PEABIRU.
Dalila Albuquerque (Facebook):
Obrigada pela postagem, Dr. Armando! Quim Marques foi um grande colega, amigo... Fazia feliz todos os que se aproximavam dele com aquele espírito amoroso e simples! Grande professor!!!
Dalila Albuquerque (Facebook):
Vou compartilhar com meus outros face friends!
Jo Sant'Iago (Facebook):
Lindas memórias... obrigada.
Ramiro Vióla (Facebook): RIO LAVAPÉS
TOADA – CANÇÃO – LÁ + AUTOR: RAMIRO VIÓLA
RIO LAVAPÉS, ESTA MUSICA EU FIZ DEDICADA AO QUERIDO RIO QUE CORTA A NOSSA CIDADE DE BOTUCATU, FAMOSO COMO ELE SÓ....QUANTAS LEMBRANÇAS DE MUITA GENTE!!!!
Marlene Caminhoto (Facebook):mencionou você em um comentário.
Marlene escreveu: "Bela e merecida homenagem, Armando Moraes Delmanto! Você sempre se lembrando das pessoas que ajudaram a escrever nossa melhor história em Botucatu! Conheci bem o Quim Marques, foi meu amigo, vizinho, talentoso, inteligente, humilde... Tínhamos muitas coisas em comum, o amor pelas artes plásticas, pelo teatro, ambos cursamos a Escola de Arte Dramática da USP, atuamos, escrevemos, dirigimos peças teatrais, éramos interessados na cultura e em promover nossa querida Botucatu... Deixou-nos muito cedo! Sinto falta de um reconhecimento maior a ele... E você está de parabéns ao lembrar,Bruno Cesar Miranda Barreira também o citou há pouco tempo... Abraços!"
Salve, Marlene.
O seu testemunho só reforça a imagem positiva do Quim Marques!
Ele foi um artista, na acepção da palavra.
Botucatu está devendo uma justa homenagem a ele.
Quem sabe o atual Cine Nelli que será transformado em um Centro Cultural poderia levar o seu nome?!?
Seria uma merecida e justa homenagem.
Valeu! Obrigado.
Grande abraço.
Mirian Emilio de Oliveira (Facebook): compartilhou sua foto.
Quim Marques!
Marlene Caminhoto (Facebook): compartilhou sua foto.
O ARTISTA BOTUCATUENSE QUIM MARQUES, POR ARMANDO DELMANTO...
Jo Sant'Iago (Facebook): compartilhou sua foto.
sabado
Leia, com certeza vc vai gostar.
Ana Rivas (Facebook):
Boa noite Armando, vi que postou uma homenagem ao querido professor Kim Marques, sugerindo que ele tenha falecido! Mas o Kim ainda está vivo, está bem debilitado por conta de um câncer que operou alguns anos atrás!!
Desculpe se entendi errado a sua homenagem, muito bonita aliás ! Mas muitos estão achando que o Kim faleceu.
Solange Rivas (Facebook):
Prezado Armando Moraes Delmanto, o Kim é realmente um grande artista, felizmente, embora adoentado, está vivo.
Ana/Solange Rivas.
A Solange fez parte da equipe do Quim Marques na Cia de Teatro Chafariz. Ninguém poderia dar essa informação com mais acerto.
De qualquer forma, Botucatu está devendo ao ARTISTA QUIM MARQUES as homenagens para quem tanto contribuiu para a Cultura de Botucatu, através de sua arte multifacetada.
Obrigado por seu esclarecimento.
Grande abraço.
Estou pasma mas feliz em saber que ele continua entre nós! Mas quando o Armando Moraes Delmanto postou essa crônica linda e o comentário do falecimento do Quim Marques, Bruno Cesar Miranda Barreira e eu, que lemos juntos o blog do Delmanto, fomos até o Google e realmente LEMOS O FALECIMENTO DELE! Com datas e tudo! Ficamos muito tristes, pois Bruno fizera com ele e a Solange a parte musical de uma peça deles e que foi segunda colocada no Estado. Mais uma vez comprovamos que não se deve acreditar cegamente nos apontamentos do Google sem antes confirmarmos! Mas havia muitas notícias do falecimento dele e até da causa, foi difícil não crer! Felizmente e para nossa alegria ele está bem, que ele se recupere e nos de muitas outras lindas obras de arte! Saúde, querido Quim Marques, beijão, guerreiro! E a homenagem do Armando foi muito válida!
Rafael Garcia Marques (Facebook):
É isso ai pessoal.Acho meu pai digno de ser homenageado.Mas ELE ESTA VIVO E PASSA BEM.Ele se aposentou definitivamente após a cirurgia em 2003 ,ficou com o lado esquerdo debiloitado,mas come muito bem,dorme normalmente,conversa , esta muito lucido e tem muito boa memoria!!!
Boa Noite Armando, gostaria de convida-lo ao evento Nas Aguas do Chafariz, mostra de teatro com exposição de figurinos e fotos. Nos dias 10,11,12 e 13 de junho/2015, a partir das 19:30, e apresentaçãoes as 20:30h. em comemoração aos 20 anos da Cia de Teatro Chafariz.
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