O Justiceiro
* Roberto Delmanto
Atualmente, com o aumento
do número de advogados e das dificuldades da Advocacia, que Voltaire
considerava a mais bela das profissões, os recém-formados em Direito costumam
prestar, indistintamente, todos os concursos. Como resultado, temos promotores
com vocação de juiz ou delegado, e delegados com vocação de juiz ou promotor.
E, pior ainda, juízes vocacionados para o Ministério Público ou a Polícia.
O juiz-promotor ou o
juiz-delegado tende a exorbitar de suas funções judicantes. Passa,
principalmente em causas de maior repercussão social, a dirigir, com a anuência
de delegados, a investigação policial, e a participar, com a concordância de
promotores, da própria acusação.
Comanda o inquérito, aceita
sem exceção os pedidos de prisão temporária e preventiva, buscas e apreensões,
quebras de sigilos fiscal, bancário e telefônico, recebe a denúncia nos exatos
termos em que oferecida, jamais a rejeitando, pois de sua elaboração
participou, defere sempre os pedidos do Parquet,
indeferindo invariavelmente os da defesa, preside a instrução judicial com
indisfarçável parcialidade e, ao final, profere, ele mesmo, a decisão
condenatória, em geral com penas das mais elevadas.
Durante o inquérito
policial e a ação penal, o teor de seus despachos e das informações que dá em habeas corpus , bem como sua postura em
audiências, deixam claro que já prejulgou o feito. Procurado pela imprensa,
externa, sem pruridos, sua opinião sobre a causa.
Notadamente quando a
opinião pública o apoia, ninguém ousa contrariá-lo. Apesar de sua suspeição ser
manifesta, as instâncias superiores, via de regra, lhe dão respaldo. Apenas os
defensores dos acusados protestam, denunciando o flagrante desrespeito a
garantias constitucionais e direitos processuais. A mídia o aplaude e enaltece,
e o juiz-promotor ou o juiz-delegado torna-se um juiz-midiático, logo
transformado em herói nacional. Almeja chegar – quem sabe – à Suprema Corte ou,
futuramente, entrar para a política.
Esquece-se, por completo,
que o Direito Penal, como, por todos, ensina o eminente Mestre do Recife, Roque
de Brito Alves, deve ter “como princípio maior garantir a liberdade do cidadão
perante o poder de punir do Estado”.
Em 1761, na cidade francesa
de Toulouse, o protestante Jean Calas foi
acusado de ter assassinado o próprio filho porque este se convertera ao
Catolicismo. A população, maciçamente católica, se revoltou, exigindo a
condenação do acusado.
Durante o julgamento,
fortemente pressionado pelo clamor popular, um único juiz, M de La Salle, ante a absoluta falta de provas, manifestou-se pela
absolvição. Um de seus colegas, indignado, lhe censurou, dizendo “Monsieur, vous êtes tout Calas” (em
tradução livre: “Senhor, vós sois por
demais Calas”), ao que La Salle,
com altivez, respondeu: “Monsieur, vous
êtes tout peuple” (também, com tradução livre: “Senhor, vós sois por demais povo”).
Calas foi condenado à morte e executado em praça pública após terríveis
torturas. Só depois, em memorável campanha liderada por Voltaire, que contagiou
todo o país, obteve a revisão de sua condenação, considerada um dos maiores
erros judiciários da França.
O juiz-herói pensa sê-lo,
mas não é, servindo-lhe, como luva, os versos de Machado de Assis:
Sem lança não reconheço Quixote.
Sem espada é apócrifo um Rodrigo.
Herói, que às regras clássicas escapa,
Pode não ser herói, mas tem a capa.
Quanto ao juiz-midiático,
em seu precioso livro Reflexões sobre a
vida, adverte o insigne Jurista Ives Gandra da Silva Martins: “Desde que os
magistrados passaram a ser vedetes da mídia, a justiça imparcial sofreu abalos”.
O juiz-delegado, o juiz-promotor,
o juiz-midiático ou o juiz-herói corre o risco de entrar para a História como
um novo Javert, policial implacável
na perseguição de Jean Valjean,
fugitivo que fora condenado por um furto famélico, retratado no imortal Os Miseráveis, de Victor Hugo; ou,
sobretudo pelos danos morais causados por suas sentenças iníquas, prolatadas em
processos absolutamente nulos, como um redivivo Carpsovius, glosador do século XVI na Alemanha, chamado de “fanático
da repressão”, que enquanto juiz, se gabava de haver condenado à morte mais de
mil pessoas.
Após ter feito parte da
Magistratura – cuja missão é tão nobre quanto árdua, estando escrito no Livro dos Livros: “Assim como julgares,
serás julgado” – corre, principalmente o risco de ser lembrado, não como juiz,
muito menos como herói, mas apenas como um justiceiro do seu tempo.
* Advogado Criminalista e Autor do Código Penal Comentado (Editora Saraiva), entre outras obras.
Um comentário:
Sempre admirei os trabalhos do jurista Eliézer Rosa, brilhante magistrado e Mestre do Direito. Sobre os advogados criminalitas ele soube captar a “alma” desses operadores do direito:
“A advocacia criminal difere de todas as demais formas de advogar. Há nos advogados criminais uma estranha capacidade de amar e de sofrer. É na advocacia criminal que está a mais alta nota da fraternidade e da solidariedade entre os homens. Estão sempre acordados na alma do advogado criminal os ecos de um distante e desconhecido pedido de socorro, que só eles ouvem, que só eles sabem donde vem. De todos os advogados, aqueles que andam mais juntos de Deus, pelo exercício contínuo da angústia e do amor fraterno, são os advogados criminais. Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal...”
E diz mais o grande Eliézer Rosa: “O advogado criminal há de ser ainda a derradeira e sonorosa cigarra de uma época obstinadamente romântica da advocacia criminal, para a qual mais importa a vitória da causa do que os lucros materiais. É essa uma concepção helênica da beleza de advogar, uma visão socrática e desinteressada da realização de um destino humano...”
Eu quis trazer essa lição de direito sobre a Advocacia Criminal para comentar o artigo-alerta, tão bem argumentado, de meu primo e excelente criminalista e jurista, Roberto Delmanto.
É um alerta à nossa Sociedade Civil. Esse seu artigo-alerta é um brado corajoso. O Brasil – temos repetido tantas vezes! – está doente. A nossa ainda jovem Nação enfrenta uma série de imperfeições desde a apuração dos crimes até seus julgamentos finais...
E esse artigo-alerta, corajoso e necessário, nos mostra a importância JUSTIÇA a pacificar e estabilizar toda uma sociedade.
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