junho 15, 2015

O JUSTICEIRO, artigo de Roberto Delmanto

O Justiceiro
* Roberto Delmanto


Atualmente, com o aumento do número de advogados e das dificuldades da Advocacia, que Voltaire considerava a mais bela das profissões, os recém-formados em Direito costumam prestar, indistintamente, todos os concursos. Como resultado, temos promotores com vocação de juiz ou delegado, e delegados com vocação de juiz ou promotor. E, pior ainda, juízes vocacionados para o Ministério Público ou a Polícia.
O juiz-promotor ou o juiz-delegado tende a exorbitar de suas funções judicantes. Passa, principalmente em causas de maior repercussão social, a dirigir, com a anuência de delegados, a investigação policial, e a participar, com a concordância de promotores, da própria acusação.
Comanda o inquérito, aceita sem exceção os pedidos de prisão temporária e preventiva, buscas e apreensões, quebras de sigilos fiscal, bancário e telefônico, recebe a denúncia nos exatos termos em que oferecida, jamais a rejeitando, pois de sua elaboração participou, defere sempre os pedidos do Parquet, indeferindo invariavelmente os da defesa, preside a instrução judicial com indisfarçável parcialidade e, ao final, profere, ele mesmo, a decisão condenatória, em geral com penas das mais elevadas.
Durante o inquérito policial e a ação penal, o teor de seus despachos e das informações que dá em habeas corpus , bem como sua postura em audiências, deixam claro que já prejulgou o feito. Procurado pela imprensa, externa, sem pruridos, sua opinião sobre a causa.
Notadamente quando a opinião pública o apoia, ninguém ousa contrariá-lo. Apesar de sua suspeição ser manifesta, as instâncias superiores, via de regra, lhe dão respaldo. Apenas os defensores dos acusados protestam, denunciando o flagrante desrespeito a garantias constitucionais e direitos processuais. A mídia o aplaude e enaltece, e o juiz-promotor ou o juiz-delegado torna-se um juiz-midiático, logo transformado em herói nacional. Almeja chegar – quem sabe – à Suprema Corte ou, futuramente, entrar para a política.
Esquece-se, por completo, que o Direito Penal, como, por todos, ensina o eminente Mestre do Recife, Roque de Brito Alves, deve ter “como princípio maior garantir a liberdade do cidadão perante o poder de punir do Estado”.
Em 1761, na cidade francesa de Toulouse, o protestante Jean Calas foi acusado de ter assassinado o próprio filho porque este se convertera ao Catolicismo. A população, maciçamente católica, se revoltou, exigindo a condenação do acusado.
Durante o julgamento, fortemente pressionado pelo clamor popular, um único juiz, M de La Salle, ante a absoluta falta de provas, manifestou-se pela absolvição. Um de seus colegas, indignado, lhe censurou, dizendo “Monsieur, vous êtes tout Calas” (em tradução livre: “Senhor, vós sois por demais Calas”), ao que La Salle, com altivez, respondeu: “Monsieur, vous êtes tout peuple” (também, com tradução livre: “Senhor, vós sois por demais povo”).
Calas foi condenado à morte e executado em praça pública após terríveis torturas. Só depois, em memorável campanha liderada por Voltaire, que contagiou todo o país, obteve a revisão de sua condenação, considerada um dos maiores erros judiciários da França.
O juiz-herói pensa sê-lo, mas não é, servindo-lhe, como luva, os versos de Machado de Assis:
Sem lança não reconheço Quixote.
Sem espada é apócrifo um Rodrigo.
Herói, que às regras clássicas escapa,
Pode não ser herói, mas tem a capa.
Quanto ao juiz-midiático, em seu precioso livro Reflexões sobre a vida, adverte o insigne Jurista Ives Gandra da Silva Martins: “Desde que os magistrados passaram a ser vedetes da mídia, a justiça imparcial sofreu abalos”.
O juiz-delegado, o juiz-promotor, o juiz-midiático ou o juiz-herói corre o risco de entrar para a História como um novo Javert, policial implacável na perseguição de Jean Valjean, fugitivo que fora condenado por um furto famélico, retratado no imortal Os Miseráveis, de Victor Hugo; ou, sobretudo pelos danos morais causados por suas sentenças iníquas, prolatadas em processos absolutamente nulos, como um redivivo Carpsovius, glosador do século XVI na Alemanha, chamado de “fanático da repressão”, que enquanto juiz, se gabava de haver condenado à morte mais de mil pessoas.
Após ter feito parte da Magistratura – cuja missão é tão nobre quanto árdua, estando escrito no Livro dos Livros: “Assim como julgares, serás julgado” – corre, principalmente o risco de ser lembrado, não como juiz, muito menos como herói, mas apenas como um justiceiro do seu tempo.

* Advogado Criminalista e Autor do Código Penal Comentado (Editora Saraiva), entre outras obras.


Um comentário:

Delmanto disse...

Sempre admirei os trabalhos do jurista Eliézer Rosa, brilhante magistrado e Mestre do Direito. Sobre os advogados criminalitas ele soube captar a “alma” desses operadores do direito:
“A advocacia criminal difere de todas as demais formas de advogar. Há nos advogados criminais uma estranha capacidade de amar e de sofrer. É na advocacia criminal que está a mais alta nota da fraternidade e da solidariedade entre os homens. Estão sempre acordados na alma do advogado criminal os ecos de um distante e desconhecido pedido de socorro, que só eles ouvem, que só eles sabem donde vem. De todos os advogados, aqueles que andam mais juntos de Deus, pelo exercício contínuo da angústia e do amor fraterno, são os advogados criminais. Não sei de nenhuma outra forma de advogar mais dolorosa e pungente que a advocacia criminal...”
E diz mais o grande Eliézer Rosa: “O advogado criminal há de ser ainda a derradeira e sonorosa cigarra de uma época obstinadamente romântica da advocacia criminal, para a qual mais importa a vitória da causa do que os lucros materiais. É essa uma concepção helênica da beleza de advogar, uma visão socrática e desinteressada da realização de um destino humano...”
Eu quis trazer essa lição de direito sobre a Advocacia Criminal para comentar o artigo-alerta, tão bem argumentado, de meu primo e excelente criminalista e jurista, Roberto Delmanto.
É um alerta à nossa Sociedade Civil. Esse seu artigo-alerta é um brado corajoso. O Brasil – temos repetido tantas vezes! – está doente. A nossa ainda jovem Nação enfrenta uma série de imperfeições desde a apuração dos crimes até seus julgamentos finais...
E esse artigo-alerta, corajoso e necessário, nos mostra a importância JUSTIÇA a pacificar e estabilizar toda uma sociedade.

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